DIREITO à ALIMENTAÇÃO …
Portugal como muitos outros países, vive uma crise social e económica que afeta milhares de pessoas durante a última década. No território da nossa diocese sentimo-la de forma virulenta, dolorosa, com o aumento do desemprego, da pobreza, da fome, e da desertificação humana.
Quando pressentíamos que esta crise se atenuava, despoletou a Pandemia do COVID-19 que veio agravar os problemas anteriores, acrescentar-lhes a debilidade na saúde, a morte e o aumento das doenças do foro psicológico e psiquiátrico.
Já este ano, nos últimos meses, a crise voltou a acentuar-se com a invasão da Ucrânia pela Rússia, que originou milhares de mortes e feridos, a fuga do cenário de guerra de milhares de famílias ucranianas e o crescente número de crianças órfãs. Consequentemente, este drama humanitário está a ter reflexos em todo o Mundo, e também em Portugal. Constatamos o aumento diário dos preços dos produtos alimentares, da energia e dos combustíveis, para além da incerteza no futuro que uma guerra sempre acarreta.
Neste contexto, a Cáritas de forma atenta e diligente, redobrou esforços para atender às necessidades básicas dos mais frágeis e vulneráveis. Necessidades que persistem, mas o tempo que passa e a falta de perspetiva de saída para a crise, questionam-nos:
– Estamos a gerir as ajudas da forma mais adequada para as pessoas?
– Estamos a ter em conta que estas necessidades sentidas são também direitos fundamentais qua as Administrações Públicas devem garantir?
– Estamos a considerar a sustentabilidade e o cuidado da criação, também nos nossos projetos?
A resposta deverá ser encontrada rapidamente, porque estamos a lidar com a vulnerabilidade e a fragilidade, palavras que refletem a realidade das pessoas que acorrem à Cáritas. Estas são igualmente os nomes próprios da precariedade, da falta de uma rede de apoio familiar e/ou social, ou de problemas interligados, não só económicos – salários mínimos, prestações sociais que não chegam ou chegam tarde e quase sempre insuficientes –, também formativos, de saúde, de habitação…
Estes problemas estruturais exigem-nos uma atenção necessariamente integral, planificada e coordenada entre os diferentes setores implicados, públicos e privados.
Na Cáritas, tanto na missão como no compromisso, vamos “beber” diretamente ao Evangelho e à Doutrina Social da Igreja. Vejamos alguns apontamentos de textos do Magistério da Igreja que podem ser fonte de inspiração e reflexão que nos facilitem a revisão das nossas atitudes, no plano pessoal, e no plano de ação social como grupo institucional:
1. “O pedido de Jesus aos seus discípulos: ‘Dai-lhes vós mesmos de comer!’ (Mc 6, 37) implica tanto a cooperação para resolver as causas estruturais da pobreza e promover o desenvolvimento integral das pessoas, como os gestos mais simples no quotidiano da solidariedade diante das misérias que encontramos. A palavra ‘solidariedade’… significa criar uma mentalidade que pense em termos de comunidade”. (EG 188).
A Cáritas acolhe este mandato de Jesus e não pergunta se devemos praticar a assistência ou a promoção, mas como integrar ambas as dimensões na luta contra as causas da pobreza, dignificar as pessoas e torná-las sujeitos da sua própria história.
2. “Destruir completamente ou desperdiçar bens indispensáveis à vida dos homens é tão contrário aos deveres da justiça quanto aos que impõe a humanidade.” (João XXIII. Enc. Mater et Magistra)
Tomamos consciência da importância das nossas ações quotidianas, como gestos que salvam o planeta ou, pelo contrário, estamos a contribuir para destruir nossa casa comum? Tanto desperdício alimentar e outros!
Alguns exemplos: – Desfazemo-nos do nosso vestuário sempre que muda a estação do ano por causa do “efeito moda”? (há sempre alternativas quando não se pretende continuar a usá-lo, ou a entrega numa rede de troca social ou na Cáritas tendo em vista s sua reutilização); – Destruímos os alimentos que sobejam de uma refeição? (é sempre possível reutilizá-los, com novas receitas) …
3. “Não se pode enfrentar o escândalo da pobreza promovendo estratégias de contenção que apenas tranquilizem e transformem os pobres em seres domesticados e inofensivos. É triste ver que por detrás de supostas obras altruístas o “outro” se reduz à passividade, negando ou pior, escondendo ambições pessoais. Jesus chamou-lhes “hipócritas”. (Discurso do Santo Padre, Francisco, aos Movimentos Populares – 28-10-2014 Vaticano)
Com esta breve, mas incisiva reflexão do Papa Francisco, reconhecemos que a Caridade não serve para adormecer consciências, mas promove a justiça social, que só é possível com a presença significativa da outra pessoa.
4. “O amor não oferece aos homens apenas ajuda material, mas também a paz e o cuidado da alma, ajuda muitas vezes mais necessária do que o sustento material. […] O preconceito de que o homem vive ‘só de pão’ (Mt 4, 4: cf. Dt 8, 3), conceção que humilha o homem e ignora justamente o que é mais especificamente humano”. (Bento XVI. Deus Caritas Est)
A Cáritas, no meio destas crises, viu reduzidas as opções de resposta. Fê-lo da melhor forma possível, em face do volume significativo de pedidos de ajuda de famílias que não tinham o mínimo para viver. Neste momento, sentimos necessidade de repensar a melhor resposta face à procura urgente e apostar num projeto promocional, emancipador, de longo prazo. Não podemos continuar a oferecer as mesmas opções de décadas atrás.
5. “O acompanhamento das pessoas é básico na nossa ação caritativa. É necessário ‘estar com’ os pobres – fazer o caminho com eles – e não nos limitarmos a ‘dar aos’ pobres recursos (alimentos, roupa, etc.). Aquele que acompanha aproxima-se do outro, toca o seu sofrimento, compartilha a dor”. (Igreja servidora dos pobres (ISP 47).
Estamos em tempo de reflexão e de vivência da sinodalidade da Igreja – caminhar juntos. Temos aqui uma ótima oportunidade de mudar de paradigma, de procurar respostas sustentáveis, que visem a promoção, que escutem o pobre, que se lhes dê voz, que os libertem da dependência de quem os ajuda. Enfrentar o desafio de repensar o atual modelo, baseado na ajuda em espécie, onde é difícil evitar ou reduzir o desperdício devido à compra massiva de toneladas de alimentos quando as necessidades de distribuição final são desconhecidas. Repensar programas europeus, como o FEAD (Fundo de Auxílio Europeu às Pessoas mais carenciadas, ou o POAPMC (Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas). Deste modo, as famílias não podem escolher o que querem comer, não podem adaptar a sua ementa a necessidades particulares de saúde ou aos seus gostos e costumes culturais, pois depende dos produtos disponíveis e do momento específico da sua distribuição, feita, aliás, de forma restrita para uso exclusivo de pessoas com economias precárias, causando segregação. Tudo isso favorece a perda da autonomia pessoal, o bom uso do dinheiro, a possibilidade de administrar o orçamento familiar, a avaliação de uma compra eficiente, o partilhar do tempo de escolha dos produtos, a compra em família.
É necessário procurar modelos alternativos que contrariem as limitações e dúvidas que são geradas na entrega de alimentos em espécie.
Um bom exemplo é o Programa Operacional Inclusão Social e Emprego (POISE), cujo objetivo é apoiar ações que promovam maior inclusão social e melhor emprego em Portugal, através da promoção da melhoria das qualificações, da elevação da taxa de emprego, e da luta contra a pobreza e a exclusão social.
Uma questão prioritária a considerar é a necessidade de reivindicar um sistema organizado de benefícios sociais públicos, que, entre outros, permitam o acesso às necessidades básicas em igualdade de condições com os restantes cidadãos. Lembremos que o Estado, por meio dos seus serviços desconcentrados e locais, é (deve ser) o garante desse direito e não é o mesmo, trabalhar pelo direito a uma alimentação adequada, e repartir alimentos. Por isso esta interessante questão – Não estaremos a contribuir para desmantelar o estado de bem-estar social, utilizando estes mecanismos? Devemos manter a clareza e prever respostas que, sem deixar de atender às pessoas em situação de vulnerabilidade, impulsionem as administrações a trabalhar para garantir esse direito.
O direito à alimentação não pode ser desligado do desperdício alimentar. De acordo com as estatísticas, são produzidos 10 milhões de toneladas de desperdício alimentar. Em Portugal cada pessoa desperdiça entre 20 a 30 Kg. de alimentos por ano, que afeta todos os elos da cadeia alimentar: do produtor ao consumidor, passando pelo distribuidor. Esse desperdício tem um custo económico, ambiental e social. A FAO (agência da ONU para a Alimentação e Agricultura) estima que o custo económico direto de produtos em perda ou desperdiçados é de 900 biliões de euros por ano. Se somarmos o custo ambiental e social, chegamos a 2.340 biliões de euros! Nos últimos anos, em Portugal, quer por efeito de crescentes movimentos da opinião pública e de múltiplas iniciativas privadas, nomeadamente dos Bancos Alimentares Contra a Fome, quer mais recentemente por reflexo da Diretiva Europeia sobre Resíduos, (UE 2018/851) têm vindo a ser delineadas algumas políticas públicas e desencadeadas ações com vista à redução do desperdício alimentar. Destaca-se neste quadro a criação e ação da Comissão Nacional de Combate ao Desperdício Alimentar.
Por tudo isto, na Cáritas Diocesana de Portalegre – Castelo Branco, a nossa aposta centra-se num modelo de ajuda que evite uma ação social fragmentada, e inclua princípios e valores, objetivos e critérios que propomos. Não nos preocupa apenas a situação de precariedade material, mas também as outras necessidades que têm em conta a dimensão relacional e sociocultural. Estamos orientados para que as pessoas pobres cubram as suas necessidades, na medida do possível, através dos canais normalizados que, antes de caírem na situação de pobreza, já viveram, com a garantia do direito à alimentação e de contornar a perda de aptidões pessoais. Para isso dispomos de programas e serviços de promoção, como o apoio ao emprego, ou a distribuição de “Tickets Restaurante”, para além do apoio social e psicológico.
Portalegre, 17/05/2022
Elicídio Bilé